quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Camisetas

Uma camiseta pode valer muito. E não pela marca, ou tecido, mas sim pelo que representa. Usamos um uniforme, que se torna a cara da equipe. A alma. Não à toa, professores e alunos, que passam a curtir o trabalho, nos pedem esperançosos uma.
Ele devia ter seus 15 anos. Falante e carismático, levava uma vida feliz, driblando com habilidade certa deficiência mental, que o levou a atrasar alguns anos na escola.
- Seu dentista, você me dá sua camiseta? - me perguntou amável, com os olhos brilhando atrás de seus grossos óculos.
Respondi que não podia, praticamente uma resposta ensaiada por anos a fio. Desse uma camiseta a cada pessoa que me pedisse, não daria conta, nem com uma confecção própria.
A noite veio. Nossa última naquela cidade do sertão bahiano. Dia seguinte, após o almoço, viajaríamos para outra cidade. Enquanto o cinema comunitário que levávamos era exibido, alguns alunos que fizemos amizade pediram para tocarmos violão e, assim, uma animada roda se formou. Ele era o mais empolgado, cantava quase todas as músicas com rara emoção, animando a todos. A certa altura, me olhou e pediu:
- Ô meu amigo, me dá um aí, e faz um sonzinho, que vou falar umas coisinhas pra todo mundo aqui.
Dei risada. Claro que ele não queria o nota de verdade, comecei a tocar algumas notas no violão, o que o fez abrir um largo sorriso, me fazer um sinal positivo, como quem diz "é essa aí mesmo!".
E começou a falar. Seus olhos, como de costume enquanto falava, ficavam fixos no horizonte. Foram palavras tão doces e bonitas, para nós da equipe, sobre nosso trabalho, dedicação, alegria, que emocionou a todos, inclusive professores e alunos que estavam presentes.
- E por isso pessoal, nós temos que agradecer a essas pessoas, que vem de tão longe, para ajudar e fazer o bem pra gente e pra toda comunidade! - disse por fim, e pediu uma salva de palmas, prontamente atendido.
Dia seguinte aquelas imagens ainda eram fortes em nossas mentes e corações.
- Onde está ele? - perguntei para um amiguinho que estava em minha sala.
- Num veio hoje não.
Perguntei onde morava. Ficava bem perto da escola. Antes de ir embora, eu iria até a casa dele, levar uma camiseta.
Muitos ficaram sabendo. Professores, que muito me pediam uma, estavam ali, mas nenhum me questionou.
Foi curioso. Na verdade, foi bonito. Saí da escola com dezenas de pessoas me seguindo. Nunca havia sentido aquela sensação. Uns chamavam outros, e diziam que nosso pequeno amigo ganharia minha camiseta. Crianças vinham sorrindo, algumas batiam palmas, professores acompanhavam felizes.
E foi assim até sua casa. Bati na porta, ele a abriu.
- Meu amigo, você não foi à escola, eu tive que vir até aqui pra trazer o seu presente. - disse entregando-lhe a camiseta do IBS.
Seus olhos brilharam, as palavras não saíram e ele me abraçou.
De repente elas saíram, vagarosamente, de um garoto emocionado que me abraçava olhando ao longe:
- Muito obrigado!

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

O amanhã

Ele olhava para a casa a sua frente. Nunca se sentiu nela como o nome sugere. Casa. Não era sua, não era de sua mãe, nem nunca seria.
Era estranho olhar para ela agora. Muda, como se nenhum barulho pudesse sair daquela porta. Nem mesmo pouco tempo atrás, quando batia, na esperança que alguém ouvisse. Que alguém o deixasse entrar.
Muda, era assim que sentia aquela casa. Era como se ela dissese para ele: "muda, menino".
E foi assim que ele decidiu. Não mais ficaria ali. Pensou melancólico "por que não se sentia tão triste". Talvez porque sua mãe, que deveria ser sua mãezinha querida, não o defendia. Não o recebia, quando ele chegava de noite, após a escola, cedendo ao padrasto, que o queria longe dali.
"Adeus", disse para si mesmo, com a angústia de quem seria ouvido por ninguém, além dele. Teria uma vida nova, teria sucesso, moraria com o padrinho e buscaria seus sonhos. Já tinha uma bicicleta. Um dia teria um mp3 e nem precisaria de sua mãe ou do padrasto para conseguir. Do alto de seus 12 anos encontraria sucesso naquelas terras do sertão da Bahia.
O amanhã? Que importa. Já tinha passado fome antes, se tivesse que passar de novo, não seria novidade alguma.
O lado bom de estar saindo de casa, praticamente expulso pelo namorado da mãe, é que tudo o que conseguisse, de hoje em diante, seria lucro. É a parte positiva de se sair do zero.
Amanhã será um novo dia, de uma nova vida. De um garoto novo. Ainda tinha sua vida inteira pela frente.
E agradecendo a Deus por isso foi embora, sem olhar para trás.