segunda-feira, 16 de abril de 2018

Sobre o valor e valores

Ela chegou eufórica em casa. Tinha vivido na escola a oportunidade de ajudar ao próximo. Nove anos de idade e a vontade de melhorar o mundo.
- Pai! Pai! Me dá dinheiro para eu levar na escola?! Eles estão arrecadando para ajudar a comprar leite para famílias carentes!
O Pai se felicitava por dentro ao ver que ali se mostrava um coração preocupado com pessoas e com o mundo em que vive. Perguntou quanto ela levaria e se surpreendeu quando a resposta foi "uns 50 reais, tá bom!".
- Filha, acho que 50 reais é muita coisa. Fica pesado pra ajudar. Você não tem que tentar resolver tudo sozinha, o ideal é cada pessoa ajudar com um pouco.
- Mas pai - disse a pequena quase indignada - você não sabe! São pessoas carentes, eles precisam e não tem dinheiro para comprar esses leites que são caros! - era um argumento inapelável, papai não teria como escapar.
Ele pensou; entre a vontade de adentrar o caminho mais fácil, agradando a filha e se orgulhando de sua preocupação social ou ensinar o valor das coisas. Decidiu o que para ele era o certo.
- Tudo bem, acho que é você quem tem realmente que decidir isso já que o valor sairá da sua mesada...
Ambos sabiam que ela tinha em suas economias um pouco mais do que a quantia pedida. Ela pensou, cara de tristeza, mas decidiu.
- Tá bom, pode ser dez reais, então.

quarta-feira, 4 de abril de 2018

Gratidão

Entre normas e regras internas criadas seguimos nossos dias, agindo de forma quase automática. Sobre esmolas havia criado um roteiro que me guiava, admirando quem o fazia mas tentando ajudar de outras formas. Já havia visto adultos explorando crianças e recolhendo o dinheiro que pediam na rua.
Aquela era uma fria noite de junho e com este conceito intrínseco esperava minha vez na fila do mercado. Numa mão uma garrafa de vinho, na outra salgados e na cabeça o pensamento em ajeitar as coisas em casa para receber amigos minutos depois.
- Tio, você pode comprar este pão pra mim? - me perguntou um menino de seus 12 anos.
Seus trajes surrados indicavam que dormia na rua. Usava uma blusa fina de moletom para o frio que fazia e exibia um saco de pães na mão.
- Não tenho, meu amigo. - Respondi de forma maquinal, quase friamente.
O garoto se virou como já acostumado àquela resposta e se dirigiu a um senhor da fila ao lado, recebendo mais uma negativa.
"Espere! - pensei - Ele me pediu para comprar pão, não dinheiro".
Enquanto ele andava meio sem destino após um terceiro não o chamei. "Amigão, deixa que eu passo o pão pra você".
- Obrigado! É oito e quarenta. - disse como que preocupado se não seria muito caro.
Aliviado por ter conseguido "resgata-lo" vi na frente do caixa prateleiras repletas de doces de todas as cores. Perguntei se não queria pegar um. Ao me perguntar qual, respondi o que toda criança sonharia ouvir: "pode escolher".
Viu os valores, pensou e perguntou:
- Em vez do doce, posso pegar um refrigerante?
É claro que podia. Outra pessoa passasse aqueles pãezinhos e talvez minha consciência pesaria de não ter ajudado. Disparou para o corredor de bebidas e voltou feliz com uma coca de 2 litros.
- É seis e cinquenta, pode ser?
Ao passar no caixa retomou:
- O meu é oito e quarenta do pão e seis e cinquenta da coca. E o seu? - disse apontando para a garrafa de vinho.
Disse que não lembrava ao certo. E não lembrava mesmo, mas também estava sem jeito de dizer o valor daquela garrafa que, apesar de não ser um vinho caro, era muito mais do que o lanche que alimentaria algumas pessoas de sua família aquela noite.
- É engraçado, as vezes as pessoas nem sabe quanto custa as coisas... - disse entre divertido e pensativo.
Nos despedimos. Ele seguiu feliz para a rua com seu irmão que o esperava junto ao caixa. Entrei no carro e o conforto do interior, longe do vento frio que fazia lá fora, me envolveu. Saindo do estacionamento vi na calçada os dois irmãos, abrindo o saco de pães com o provável irmão mais velho, que estava sentado envolto em um fino cobertor cinza. A noite seria mais agradável para aqueles três. Assim como também seria a minha, envolto aos amigos.
Ao seguir em diante senti uma gratidão imensa. Não tivesse resgatado a oportunidade naquele supermercado poderia ter visto uma cena diferente naquela calçada.
E poucas vezes um vinho foi tão gostoso quanto o daquela noite.

sexta-feira, 23 de março de 2018

Olhar de paz

Ele atendia um senhor muito simples, que dizia ser morador de rua.
- Na verdade costumo dormir em albergue, na rua só quando não consigo vaga. 
Pelo sotaque ligeiramente marcado acabou descobrindo que ele havia nascido no Líbano e veio ao Brasil depois da guerra que devastou o país nos anos 80. 
- Doutor, quem vê guerra quer paz. O senhor não imagina o que é ver alguém levando corpos de pessoas no carrinho de mão...
Ele realmente não imaginava. E mesmo tentando sabia que não chegaria perto de entender a avalanche que uma imagem daquela ocasiona no interior de um ser humano.
Lembrou das recentes imagens da guerra que ocorre na Síria, das fotos das crianças machucadas. Automaticamente pensou nas mazelas de seu país, que de tão grande ainda era imensuravelmente menores do que conversava com aquele humilde senhor.
Entendeu o sorriso sereno e limpo de um homem que dizia morar na rua e mesmo assim seu olhar transmitia paz.