segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Mão de Deus

Os desígnios de Deus. Muitos podem não acreditar nisso. Eu mesmo não acredito em um destino que está escrito, completamente definido para cada um de nós. Dessa forma não teríamos mérito algum em conseguir algo ou nenhum erro em cometer crimes: estaríamos apenas seguindo um texto escrito pelas mão divinas.
Porém acredito que a vida possa ser como uma estrada em que vamos seguindo adiante, cada um na sua. A minha passou por uma faculdade de odontologia. O livre arbítrio poderia me fazer mudar para outra, temos nossas escolhas.
O fato é que muitas vezes encontramos situações em que Ele parece nos indicar algo a fazer, de forma tão clara que sentimos a Sua presença. Somos usados – no ótimo sentido - apenas como um instrumento para algum plano maior. E como prêmio: a realização, uma enorme alegria.
Mateiros, uma cidade bem pequena no interior do Tocantins – coração do Jalapão -, nos presenteou com uma dessas situações.
Para chegarmos até a cidade tínhamos um dia inteiro de viagem pela frente, já que a estrada, apesar de muito bonita: de terra, vegetação numa mistura de caatinga e cerrado e animais silvestres, possui trechos bem ruins, com atoleiros.
Foi num desses que o nosso caminhão (ou melhor, o que as Casas Bahia nos empresta para o trabalho) atolou feio. Pás e enxadas, que eram usadas para fazer hortas, trabalhavam incessantemente para tirar o enorme veículo do que parecia ser uma piscina de terra fofa.
Uma das maiores motivações para a pressa era a vontade de conhecer a Cachoeira da Formiga – que possui uma água num tom azul forte, tingida pela natureza -, que fica a uns 40 km de Mateiros, já que chegaríamos cedo e não haveria trabalho naquela tarde.
Depois de uma hora entre suor, terra vermelha tingindo nossas roupas e corpos e tentativas inúteis conseguimos desatola-lo. Íamos direto à cachoeira, mas decidimos entrar na cidade para comer algo rápido e amansar a fome. Neide – nossa amiga da cidade que estava conosco - nos indicou uma lanchonete, que para o nosso “desespero”estava fechada.
Um homem vinha descendo a rua rapidamente e ela lhe perguntou se sabia onde estava o dono do bar.
Ele com uma aparência desesperada não conseguiu responder, apenas disse que estava procurando alguém que pudesse ajudar seu filho que estava brincando com uma corda na boca, presa a um pedaço de pau e ao pisar na madeira teve seus quatro dentes de baixo arrancados. Estes ainda estavam na gengiva, como se estivessem apontando para o horizonte. Disse que estava no posto de saúde num estado lamentável, com a boca sangrando muito e chorando sem parar. E para agravar a situação, a única dentista da pequena cidade estava de férias e não havia outro na cidade.
- Onde ele está? Eu sou dentista e posso ajudar! – disse, sentindo o arrepio de uma daquelas situações críticas.
- Tá lá no posto de saúde. – respondeu apontando para o final da rua.
Perguntei há quanto tempo o acidente havia ocorrido, torcendo para que tivesse sido há pouco. Na realidade a cada minuto que passa a chance de se ter um sucesso no reimplante dentário diminui. Até meia hora é excelente, quarenta minutos ainda há uma boa chance de sucesso. À partir de uma hora as chances vão se tornando mínimas.
- Deve fazer uns vinte minutos. – respondeu o desesperado pai, para minha alegria.
Corremos então para o posto. A pressa - e ansiedade para atendê-lo - era tão grande que só mais tarde comecei a me dar conta: como tudo tinha dado tão certo para que pudéssemos ajudar o garoto!
Uns podem chamar de coincidência, outros de providência divina. Independente de darmos um nome, o fato é que sentimos que há algo maior nos olhando e podemos até sentir Sua presença.
O garoto poderia ter sofrido o trauma qualquer dia desse mês em que a dentista do posto estava de férias, mas aconteceu justo no primeiro dos dois dias em que ficaríamos na cidade. Não só o dia, mas o mais importante: o momento. Se tivesse ocorrido tudo pela manhã não adiantaria muito reimplantar os dentes. Assim, o fato de o caminhão ter atolado nos fez chegar ao tempo exato. Perdemos em torno de uma hora naquele sufoco todo e quando chegamos à cidade ele havia acabado de chegar ao posto de saúde. Não tivéssemos perdido todo aquele tempo na estrada, àquela altura estaríamos na cachoeira, alguns quilômetros da cidade e, provavelmente, eles nem saberiam.
Voltando ao Posto de Saúde: eu, completamente imundo. Minha roupa num vermelho bem escuro, quase marrom, chinelo de dedo, cabelo ruivo de terra... Uma belezura!
Quando saltei do carro, ao longe, já ouvia o angustiante choro. Até me impressionei ao ver o garoto. Realmente, como o pai havia dito, os dentes de baixo apontavam o horizonte, muito sangue em volta e as mulheres do posto, junto com a mãe, com caras de desespero, sem saber o que fazer.
Fui direto ao banheiro. Lavei as mãos, até o cotovelo, e pareceu que um novo antebraço surgia diante dos meus olhos. Nunca em toda minha vida atendi alguém num estado daquele. Minha havaiana deixava pegadas pelo consultório e a única coisa limpa que estava usando eram as luvas e a máscara. Ah, claro, meus antebraços novos também.
Perguntei se estava tudo funcionando para a auxiliar que me ajudava a arrumar os materiais.
- Não, está com um problema de vazamento naquela garrafinha – era o filtro de ar.
O compressor funcionava, mas o ar não vinha para cadeira.
Foi triste ouvir isso. Precisaria muito usar o ar do compressor. Principalmente para o sugador e para o jato de água. Bom, pelo menos a cadeira subia e descia. Já facilitava um pouco.
Pedi então para chamarem o Manolo, meu braço direito e esquerdo durante os trabalhos. Ele é um cara que já fez de tudo na vida. Tem uma maleta de ferramentas que faz milagres. Várias vezes que já tive problemas com algum equipamento durante as viagens lá vinha o Manolo e sua maleta. Sempre arrumava tudo, o que nos fez chamá-lo de Magaywer – personagem de uma série dos anos 80 que com um clips e alguns chicletes concertava uma jamanta.
Não podia esperar o conserto. Na verdade nem sabia se o filtro tinha conserto. Então comecei a atender da maneira que podia, sem o sugador, sem o jato de ar ou de água enquanto meu amigo se lançava ao filtro de ar preso na parede do posto.
Com certa dificuldade consegui anestesiar o nervoso – com razão – garoto e reimplantar seus dentes permanentes. Um era decíduo (dente de leite) e não seria necessário.
- Pronto! Tá consertado! – disse meu companheiro enquanto eu também finalizava o atendimento.
Liguei o sugador e ele estava funcionando normalmente. Não precisaria mais dele, mas era ótimo deixar tudo funcionando bem para os próximos pacientes.
Saí da sala parecendo que havia sido atropelado pelo caminhão do Pedro. Todo sujo – assim como entrei – e cara de acabado. Geralmente quando se tem esses casos mais complicados a pessoa doa muita energia para atender e ainda acalmar a criança.
Mas estava feliz. Muito feliz por ter ajudado uma pessoa que estava em uma situação tão difícil. Pensava em como ele ficaria, com os dentes naquela posição – horizontal -, gengiva inflamada... Quem o anestesiaria para mexer ali? Quanto tempo ele ficaria com os dentes daquele jeito até extraí-los em outra cidade? Foi aí que comecei a me dar conta de como tudo tinha ocorrido perfeitamente para o ajudarmos.
Entramos todos no carro depois de recebermos muitos agradecimentos da mãe e das moças do posto. O melhor e maior pagamento que poderíamos ter. Ver – e ouvir - a auxiliar dizer “muito obrigada” com os olhos cheios de lágrimas e desejando que Deus nos ajudasse muito, é algo que não tem preço, nos deixava emocionados.
Era fim de tarde, ainda restava um pouco de sol no lindo céu de Mateiros. Enfim iríamos para a Cachoeira da Formiga. Me encostei no banco do carro enquanto o Manolo dava a partida. Todos estavam em silêncio, como se estivessem, aos poucos, absorvendo as muitas emoções vividas durante aquele dia.
Olhando pela janela o céu completamente azul, sem nuvens, sentia aquela sensação de felicidade plena. Observando meus amigos percebi que todos estavam compartilhando o mesmo sentimento. E num carro que parecia flutuar pegamos a estrada de terra que seguia até a cachoeira da Formiga.