quarta-feira, 21 de julho de 2010

Duas gotas

O que são duas gotas? Quase nada. Uma total indiferença. Imaginamos duas solitárias gotas em um copo. "Está vazio", diríamos.
Duas gotas, na maioria dos casos, passam despercebidas, como dois grãos de areia em uma praia. Porém, em um caso, a diferença é tão brutal que pode significar a linha tênue entre a vida e a morte, assim como um mísero segundo, antes ou depois, pode significar o encontro com um carro ao atravessar a rua.
Hoje, atendi Francisco. Um homem de 37 anos, simpaticíssimo, alegre, que chegou em meu consultório em sua cadeira de rodas, carregada nos braços de dois amigos que a subiram pelos muitos degraus que levam até minha sala.
Ele não anda, possui o braço esquerdo com grande limitação de movimentos e o direito com alguma dificuldade.
- E doutor, já estive muito pior. Até a cabeça era mais difícil de mexer e eu babava muito. Era um babão! - comenta e solta uma alegre risada.
O destino de Francisco o levou para essa situação por causa de duas gotas. Míseras -ou colossais - duas gotinhas que, na época certa, o faria subir as escadas do meu consultório saltitando e me cumprimentar de pé, sem limitação alguma.
Hoje, com a enorme campanha anual por todos os cantos do país, a paralisia infantil está praticamente erradicada. Nos anos 70, ainda mais na roça do interior de Minas Gerais, onde nasceu, essa não era a realidade.
Tratei dele por um bom tempo, tentando adiantar ao máximo que pudesse o tratamento, pois sei da dificuldade de locomoção e trabalho para seus amigos o carregarem escada acima. Tempo que fiquei pensando em como essas duas gotas poderiam ter mudado o destino do jovem e alegre Francisco.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Hospitalidade sertaneja

- Vocês podem pousar lá em casa essa noite!
Assim nos disse seu Nilo, um sertanejo típico, desses que usam a camisa de botões aberta, uma calça surrada e saudável que só. Não aparenta, nem de longe, a idade que tem. Apesar de ter seus setenta anos, passa facilmente por cinquenta e poucos.
Estávamos em São Raimundo Nonato, cidade do sul do Piauí, que abriga a famosa Serra da Capivara. Um lugar "mágico", patrimônio da humanidade e que exibe um conjunto fantástico de pinturas rupestres, espalhadas por seus ancestrais paredões, nítidas, como se estivessem sido pintadas há poucos anos atrás.
O hotel em que estávamos hospedados, ficava a alguns quilômetros da escola de zona rural em que trabalhamos. O bairro Pé do Morro. Ainda hoje temos amigos que nos consideram (e são considerados) da família por lá. Quando os moradores nos ofereceram suas casas para uma boa noite de sono, ficamos felizes.
Seu Nilo levou-nos - eu, Luis e Ana Elisa - para o interior de sua casa. Entramos por uma pequena porta e passamos uma sala com duas cadeiras de balanço - feitas com tiras de plástico - e um pequeno corredor, onde haviam duas entradas, uma a sala de televisão, onde uma simpática senhora, que a assistia, nos cumprimentou, e a outra seria meu quarto e do Luis.
- Vocês não "arreparem" não, a casa é de pobre. - nos pediu humildemente seu Nilo.
Dissemos que, muito pelo contrário, a casa estava linda e agradecíamos a hospitalidade. Afastamos a cortina, que funcionava como a porta, e entramos no quarto, muito limpo e bem arrumado.
"Seu Nilo preocupado em ser um quarto simples e está mil vezes mais arrumado do que o meu!", pensei.
- Vocês querem banhar? Eu busco água "proceis". - nos disse -. Só que a água tá em falta, eu pego do poço, mas é um pouco "salobra*"...
- Não tem problema nenhum, seu Nilo. - respondemos, loucos por um banho. O calor do Piauí estava violentíssimo e nosso estado fazia frente a ele.
Fui o primeiro, enquanto pendurava minha toalha no banheiro, vi seu Nilo chegando com um enorme balde de água e um pote de plástico. Na outra mão uma toalha, caso eu precisasse. Tomaria um bom banho de cumbuca, comum em muitas casas pelo sertão.
Agradeci ao nosso anfitrião, coloquei o balde no chão e vi. Não pude acreditar e comecei a dar risada sozinho. No balde, repleto de água, nadavam três peixinhos, bem pequenos. Estavam ali, traquilos, na água em que eu tomaria banho. Quando olhei o vaso sanitário, que estava ao lado, comprovei: Haviam mais dois nadando ali dentro, com a calma de quem nem imagina onde está. "Ignorance is bliss"
Tomei meu banho, sempre com muito cuidado para não pegar um peixinho na ex-caneca de leite que usava para me banhar. "Com meus cabelos enrolados, se cai um peixinho aqui só vou encontrar o fóssil décadas depois!", pensei rindo.
Acabei o banho, renovado, limpo, e saí com a toalha nas costas sorrindo como quem saiu de uma ducha relaxante de um hotel de luxo. Mas não era. Era um banho muito, mas muito mais gostoso.

*Salobra: modo como o povo sertanejo chama a água, um pouco salgada, dos poços ou lençóis freáticos