sábado, 15 de janeiro de 2011

Doutora brasileira: as flechas

Ela estava trabalhando em Manaus quando falaram:
- Doutora, o navio vai seguir viagem rapidamente para atender a umas tribos indígenas bem isoladas, próximas à fronteira.
A Funai havia entrado em contato com a Marinha e pedido um auxílio urgente. Muitos índios estavam morrendo por alguma doença e a situação piorava a cada dia. Um navio foi preparado para a longa travessia e os médicos embarcaram para a operação.
Foram em torno de 10 dias de viagem até chegar ao local. Saíram de Manaus pelo rio Solimões, adentrando em seguida no rio Içá, na região da tríplice fronteira (Brasil, Colômbia e Peru). Já próximo à Colômbia, subiam por um afluente para o norte. Na tripulação, além dos médicos e militares, seguiam membros da Funai e representantes das comunidades indígenas.
A região pode ser considerada o coração da Amazônia; o local mais distante da ação destruidora do homem branco, seja do lado do Brasil ou da Colômbia. Por este motivo ainda é o berço de tribos que vivem em total isolamento, onde raríssimos integrantes falam o português.
Ao se aproximar de uma das isoladas tribos, os tripulantes ouviram: "toc". Um barulho seco, como se o navio tivesse batido em um galho. Acharam estranho e de repente: "toc, toc toc!", o ruído se repetia agora mais vezes. Quando um deles descobriu a causa e comentou a um oficial.
- Senhor, estamos sendo recebido por flechas!
Era difícil de acreditar, nos dias atuais, ser recebido por flechas de índios, mas estava acontecendo e um dos representantes indígenas a bordo precisou sair ao convés, gesticulando e gritando para que eles soubessem que aquele navio vinha em missão de paz.
Em algumas tribos, outra dificuldade: não aceitavam o tratamento dos homens brancos, queriam ser curados apenas pelo pajé. Porém a morte rondava cada dia mais a muitos homens, mulheres e crianças e assim, acabaram aceitando.
- É sinal claro de malária, mas no navio temos um teste rápido, usando uma gota de sangue, para termos a certeza - comentou a doutora.
Assim diagnosticaram que era esta doença que vinha matando tantos índios. Mas o exame não seria tão fácil. Crianças e mulheres, muitas vezes em pior estado, tinham que esperar. Os homens, quase sempre, devem ser atendidos antes. E apenas as duas médicas poderiam atender as mulheres em algumas aldeias, visto que um homem de fora não poderia tocar em nenhuma mulher da tribo.
Após a luta para fazer o atendimento, como dizer que um remédio deve ser tomado de 8 em 8 horas para alguém que muitas vezes não sabe o que é um relógio?
- Olha, você tem que engolir esta bolinha assim que o sol nascer, outra antes de comer, quando o sol estiver alto, uma quando ele estiver se pondo e uma antes de dormir. - explicava a doutora para um índio traduzir ao doente.
Ficaram mais de duas semanas atendendo a várias tribos e voltaram felizes por terem ajudado, mas com algumas dúvidas. Será que deu certo? Será que eles tomaram a medicação - que salva e realmente cura a malária - corretamente?
Não sabiam. Sabiam apenas da felicidade de ter feito a sua parte.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Uma criança feliz - por Carlos Fonseca

“E foi naquele momento que senti um calafrio. Corrente, corda, martelo ou bambu? Não importa, maínha não teria a mínima chance de impedi-lo. Agora ela acredita quando digo que nunca desejei passar o fim de semana na sua companhia, e não me reprime mais por tê-lo xingado. No começo não entendia o que estava acontecendo, estava sendo punida mas não sabia qual teria sido a razão para tal violência”.

Quantos mil anos foram necessários para a evolução humana? Por que razão até os dias de hoje algumas pessoas imitam os mais primitivos instintos animais? Esta dura realidade retrata o dia-a-dia familiar de milhares de pessoas em todo o mundo. Olhar nos olhos de uma criança e sentir o medo, a tristeza, o desânimo; de fato lhe roubaram o que é mais admirável em uma criança: a inocência.
E foi numa manhã próxima do natal que estive numa casa que abriga crianças que foram retiradas de seus lares após sofrerem algum tipo de violência, entre as mais comuns está a violência sexual. Fui convidado a participar das comemorações de final de ano, e tive o prazer de conversar um pouco sobre a paixão de minha vida: odontologia.
Cada olhar atento, cada expressão de surpresa e admiração me deixava mais empolgado e feliz por estar ali. Em cada criança uma trágica história, um trauma para eternidade; meu dever, fazê-los esquecer de tudo aquilo, e transmitir um pouco de alegria e descontração, aprendendo e rindo para seguir em frente. Pode parecer um trabalho de “formiguinha”, pois bem, me orgulho em dizer que existem muitas espalhadas pelo mundo, e sua pequena contribuição certamente favorecerá para uma melhora significativa na vida de muitas pessoas.
Estava sentado no sofá, com mais 20 amigos voluntários, assistindo a uma apresentação das crianças, e um menino se aproximou e me abraçou. Olhei para ele e perguntei em pensamento: - Por que uma criança tão indefesa como essa merece passar por tudo isso? Por que eu tive uma infância tão feliz ao lado de meus pais e aquele menino carregava tantas marcas de violência e rejeição?. Inesperadamente ele mesmo sorriu e me respondeu:
- Não se preocupe tio, eu sou feliz!
E foi naquele momento que senti um calafrio...

Carlos Fonseca é dentista, 27, e realiza projetos sociais. Uma vez por ano também viaja ao sertão com o Projeto Bandeira Científica, ligado à USP