domingo, 25 de outubro de 2015

O jeitinho

Sábado, 24 de outubro de 2015, ele estava com a esposa na fila de um restaurante que havia aberto perto de sua casa. Pela proximidade da inauguração ainda havia boa concorrência para entrar no local e uma enorme fila se estendia a sua frente, para retirar uma senha e entrar em uma fila de espera.
"Já imaginávamos", pensou resignado, e assim se passaram mais de vinte minutos para dar seu nome à garota que organizava a espera.
Enquanto o último casal a sua frente passava seus dados, observou uma jovem, de não mais que vinte e cinco anos, aproveitando a pequena confusão de pessoas em volta, se juntar ao seu lado. Assim que o casal saiu ela se adiantou perguntou à funcionária:
- A espera está muito longa?
- Em torno de quarenta minutos, gostaria de esperar? - respondeu a hostess, sem imaginar que não se tratava de alguém fora da fila. Quando a moça resolveu deixar seu nome na lista, ele decidiu que, daquela vez, não deixaria passar.
- Tudo bem, mas você não estava na fila, não é?
Olhando assustada e não imaginando que alguém recriminaria seu gesto de ultrapassar a todos que pacientemente esperavam sua vez, gaguejou e disse para a funcionária que a olhava assustada:
- Não, só vim fazer uma pergunta, meu namorado está lá atrás na fila... - disse constrangida, disfarçando o indisfarçável, visto que passava seus dados para a lista de espera.
- Mil desculpas, não havia percebido que ela não estava na fila! - se desculpou a funcionária sinceramente e ele a tranquilizou, não havia o menor problema.
E realmente não haveria. O problema que poderia ocorrer estava envergonhado de sua atitude, ao ponto de não mais ficar na fila.
Enquanto jantava pensou no número de pessoas que recriminam corrupção no governo, em empresas, mas quando encontram uma possibilidade buscam levar vantagem ilegal sobre os outros.
Decidiu não mais pensar sobre aquele ato, ou o jantar não teria o mesmo sabor. Mas tinha a certeza de não mais observar uma corrupção sob seus olhos sem se manifestar.

domingo, 19 de julho de 2015

Filho de Tupãberapa

Não haviam muitas tribos isoladas no país. Na verdade, nos dedos de uma, ou no máximo, duas mãos, ainda descobriríamos um grupo de seres humanos completamente isolados de outros de sua espécie. Porque um brasileiro, hoje, está tão próximo de outro homem, quanto um chinês.
Mas tribos de índios brasileiros que se mantém na mesma etapa evolutiva desde que Cabral pisou nestas terras, há pouquíssimo, em mais de 500 anos.
"Nossa, mas quinhentos anos é muito tempo!", já pensou, lembrando daquela amiga que sempre julgava tudo pelo status quo do pensamento corrente.
- Você tá louca?!! Enquanto esses caras andavam pelados pelas ruas daqui da cidade, outros estavam estudando música clássica na escola no Velho Continente! E sabia que eles ainda andam pelados?!!! - diria tão diretamente quanto um verdugo em frente ao muro de fuzilamento.
Por tudo isso, se sentia um privilegiado em conversar com aquele jovem.
O outro, à sua frente, também se sentia um "escolhido". Por ser o filho mais velho o pajé - algo na atualidade comparável a ser filho do príncipe Charles, da Inglaterra (e aqui, um outro parênteses - pensou -, uma adolescente do interior do sertão do Piauí, conhece os pormenores da vida deste príncipe e de sua família real inglesa...).
Ele não fora "o escolhido". O índio sabia de sua colocação em sua época na terra. Por estar ali, deveria agradecer à luz de Tupãberaba. Por ter nascido naquela tribo, por ser o filho mais velho do soberano dos seus. E sabia também da brutal responsabilidade daquela posição.
Estava ali, naquela reunião de homem-branco, por causa de uma ong que cuidou da saúde de sua tribo e começou um trabalho de parceria por lá.
Pensando em tudo isso, o rapaz da cidade grande, decidiu tentar estabelecer o maior diálogo possível - claro, com a ajuda de um intérprete - com seu "semelhante".
- É um enorme prazer conhece-lo! - disse o outro em um tupi-guarani difícil de assimilar mesmo ao experiente intérprete.
- Meu amigo, você nem imagina quanto estou feliz em estar aqui...
E ali conversaram, sobre tantos assuntos quanto poderia imaginar. Porém, marcou muito quando o jovem riu, quando ouviu sobre o cotidiano de sua gente. Era difícil entender esse negócio de segunda, terça..., enfim!
Só poderia ser coisa de Jurupari, pegar cinco dias sagrados, como parte de sete, os transformando em tristeza, em troca de dois que seriam felizes, assim como os sete deveriam ser.
Se desculpou com o novo conhecido pelo riso que deu. E ele percebeu ainda que o outro também sorria como seus amigos.
Percebeu também, que algo não andava bem com sua sociedade. Não era apenas uma crítica de alguém que sentava num bar e tomava 10 chopps em sua frente, e discorrias sobre possibilidades e correntes humanistas. O rapaz em sua frente vivia sete sexta-feiras por semana, aclamada por dez entre dez amigos seus como o melhor dia de todos!
- Trabalhar é bom, comemorar é bom, Por quê dividir essas coisas? - ele não soube responder.
Não sabia se conseguiria deixar as coisas que aprendeu em sua sociedade, mas tinha certeza que a partir daquele dia, procuraria ser uma coisa simples: apenas um ser humano melhor.
E sua meta dali para frente era apenas ser melhor do que ontem.

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Crônicas de um brasileiro nos Estados Unidos - Contrastes


Era a segunda vez que visitava os Estados Unidos. Da primeira, se surpreendeu mesmo antes da aterrisagem. 

Quando decolou à noite de Guarulhos, em São Paulo, como sempre fazia, olhou para as luzes das casas e ruas que iam se distanciando abaixo de si. Curioso notou a disposição desses pontos brilhantes, irregulares, espalhados como se fossem sementes jogadas ao acaso por um lavrador descuidado. 
Ao se aproximar do destino, espantado, fitou as luzes que se aproximavam abaixo. Eram de uma regularidade que não conhecia. Formavam quadrados perfeitos, brilhando em uma ordem exata, denunciando o que deveria ser um crescimento planejado e consciente. 
Achou estranho sentir aquele contraste como um pequeno incômodo surgindo do fundo de seu peito. Ainda sentiria muito essa sensação, e o avião ainda não tinha tocado o solo. 
Desta vez a surpresa não viria tão cedo, mas quase. 
Visitava um amigo que morava em Portland, do outro lado americano, necessitando um segundo vôo no país. 
Diferente do primeiro, este vôo interno era composto praticamente por cidadãos locais e assim em mais 4 horas estava pousando em seu destino. 
Como acontece em qualquer lugar - quando o avião para - pessoas levantaram e pegaram suas malas no bagageiro. Mas o que viu em seguida o deixou espantado. As pessoas da primeira fila saíram, e só então as da segunda se adiantaram. As que estavam na terceira se levantaram em seguida e, pacientemente, pegaram suas malas de mão e seguiram em diante. 
Ele estava na penúltima fila e viu aquele desembarque calmo, orquestrado, de uma educação intrínseca que, mais do que chocava, emocionava. 
Se emocionou porque lembrava do "salve-se quem puder" quando as portas de um avião abriam em seu país. 
Quando chegou sua vez teve vontade de agradecer às pessoas da última fila por esperá-lo sair, mas se segurou. Lembrou que ninguém agradecia a quem esperava, pois aquilo era o certo, e o certo não é um agrado, é uma obrigação. 
A surpresa desta vez não havia ocorrido antes do avião tocar o solo, mas surgiu antes mesmo de que saísse da aeronave. 
E assim ele saiu, pensativo para uma cultura que era mais nova que a sua, mas estava a muitos e muitos anos na frente em questão de cidadania e educação. 

sábado, 21 de março de 2015

Conceitos

Pelos caminhos que vamos traçando fiz amigos verdadeiros em extremos, de uma simplicidade de sala de chão batido de terra ou de um brilho de porcelanato que ofusca a visão. 
Nesse convívio mudei alguns conceitos que ouvi durante a vida. Um deles: "o dinheiro não trás felicidade".
Bobagem. O que trás, ou não, a felicidade é o grau de bondade que há no coração da pessoa e isto está longe de estar ligado à posição social ou a oportunidades. 
E vou mais além: nem está ligado à educação que as pessoas exaltam, que é a escola de qualidade. Já vimos adolescentes ricos, que viajaram o mundo, falavam várias línguas e colocaram fogo em um índio porque pensavam se tratar de um mendingo(!). 
A educação de casa sim, ajuda a moldar um coração bom. 
Tampouco, como outro ditado prega: "o dinheiro deturpa o ser humano". Pessoas boas nascem no mesmo tanto entre ricos e pobres. Aquele corrupto que desviou milhões ou o empresário tirano e desonesto são o espelho exato daquele garoto que nasceu na favela e em vez de procurar um trabalho prefere as facilidades de tráfico. Alguém dúvida que, nascessem em papéis trocados, desempenhariam seus papéis da mesma forma?
Uma pessoa infeliz nunca estará satisfeita com o tanto que tem, sempre colocará a alegria no próximo passo a dar, a cada dia.  
A felicidade escolherá para amiga aquele que viaja para Paris ou aquele que em seu chinelo velho de dedo senta na calçada de terra para conversar com o vizinho e olhar as crianças brincando. 
Para isso, basta ter um bom coração. Simples assim. 

domingo, 8 de março de 2015

Mundo ideal

Fila de supermercado tem suas peculiaridades. Uma delas é a capacidade de se fazer amizades. Poucos minutos são suficientes para assuntos diversos, dos mais frívolos aos mais transcendentais.
João havia adentrado uma conversa daquelas despretensiosas em que se discorre sobre o clima ou como estão caros os produtos. O senhor com quem trocava impressões tinha um papo fácil e interessante. Brincou com sua filha, deram risada juntos, e firmaram a amizade que sabiam ter fim em alguns minutos, numa translúcida honestidade onde ao sair do estabelecimento não trocariam contatos, talvez nunca mais se encontrariam, mas eram gratos um ao outro por simplesmente terem compartilhado aquele instante.
"Um abraço" dito e João seguiu com as compras e sua alegre filha, saltitante da altura de seus quatro anos de idade, em meio às filas de carros que se espremiam pelo estacionamento naquele agitado fim de semana em sua cidade.
Atravessando a última rua do local, um carro virou com certa velocidade, todavia em hábil tempo para que pedestre e motorista se olhassem e se reconhecessem. Poucos minutos atrás, haviam sido amigos. Tempo também para que ambos pudesses escolher, o primeiro recuar um passo, o segundo parar e dar passagem à pequena família.
Neste instante, que pareceu durar o eterno tempo de todas as conjecturas possíveis João refletiu. Fosse um mundo ideal, sua preferência seria incontestável. Porém, sabia há tempos que vivia em um lugar dramaticamente distante deste mundo e jamais arriscaria sua vida - muito menos a de seu maior tesouro! - esperando o bom senso no semelhante, tão escasso pelas ruas como a água nos reservatórios de sua cidade.
Recuou, no mesmo instante em que o adversário acelerou. Se espantou de ser "no mesmo instante", pois o motorista contou que ele não confiaria na bondade alheia e retrocederia. Do contrário...
Do caso contrário João não queria pensar. Apertou a mão de sua pequenina com o mesmo aperto que sentia em seu coração; pelo risco que ela sofreu. Pela tristeza em saber que sua amada filha não vivia em um mundo ideal.

domingo, 1 de março de 2015

A Pedagogia do Horror (parte II): a inadequação dos contos de fadas na Educação Infantil (por Fernando Martins)

No dia 10 de fevereiro de 2015, o Canal Brasil, de TV por assinatura, veiculou o programa “No Divã do Dr. Kurtzman”, em que foi entrevistado o cantor, músico e compositor brasileiro Zeca Baleiro. O músico contou que, quando criança, ouvia histórias do folclore regional em que os ciganos figuravam como sequestradores de crianças. Um dia, foi a uma festa com um amigo que resolveu pregar-lhe uma peça. Combinou com um cigano, que atendia em uma das barracas do evento, que ao passar próximo da barraca apontaria para o cigano e diria ao menino: “O cigano irá te pegar!”. A ignorância ou a crueldade da ação não parou por aqui. O cigano, incorporando o personagem da trama, corre atrás do menino dizendo que iria pegá-lo. Resultado: o menino Zeca Baleiro corre desesperadamente, sem parar, até a sua casa e se refugia debaixo de sua cama. O músico finaliza seu testemunho dizendo que aquele episódio ficou marcado em sua mente como uma espécie de trauma. Certamente poderíamos coletar diversos outros testemunhos semelhantes ao de Zeca Baleiro, em que crianças são vítimas destas histórias. 


 


O importante a ser observado é o fato de que histórias como estas continuam a ser transmitidas não somente na cultura popular, mas nos ambientes formais de Educação Infantil, ou seja, nas escolas públicas e privadas de nosso país. Estas histórias possuem o mesmo eixo central do enredo dos contos de fadas. 


 


Se estas histórias, como os contos de fadas, fossem contadas na Idade Média europeia, não seria muito difícil entender a razão pela qual elas eram contadas às crianças, uma vez que estas narrativas representavam exatamente o mundo tenebroso daquele espaço e tempo histórico, conforme já nos descreveu o historiador Robert Darnton.


 


O mais espantoso é saber que no Brasil do século XXI, estas histórias sejam ministradas como conteúdo de sala de aula para crianças na Educação Infantil. Parece não haver, por parte dos educadores, pesquisadores e dos responsáveis pela elaboração dos documentos regulatórios da política educacional promovida pelo Ministério da Educação, nenhuma discussão séria e aprofundada sobre a adequação ou inadequação destes conteúdos para nossas crianças. Parece que os educadores de um modo geral ficam anestesiados diante destas narrativas e não conseguem perceber o quanto de crueldade, de medo, de terror e de horror estas narrativas podem incutir nas crianças. Ou será que devemos desprezar e desconsiderar os diversos testemunhos existentes de crianças, de pais, de adultos, como o testemunho de Zeca Baleiro, que clamam em alta voz sobre os malefícios destas histórias na psique das crianças? 


 


Se analisarmos os estereótipos dos personagens que são recorrentemente encontrados nos contos de fadas, chegaremos a conclusão de que a bruxa é a personagem mais terrível e mais temível dos contos de fadas. A bruxa frequentemente exerce o papel de sequestradora e devoradora de crianças, assim como os personagens das narrativas sobre os ciganos. A pesquisadora de literatura folclórica da Universidade de Harvard, Maria Tatar, em seu livro “The Hard Facts of the Grimm’s Fairy Tales”, alerta que, para muitos adultos, ler as edições originais dos contos dos irmãos Grimm pode ser uma experiência reveladora diante das descrições de assassinatos, mutilações, canibalismo, infanticídio e incesto que preenchem as páginas destas “bed time stories”. Eu ainda acrescentaria que não somente nas edições originais dos irmãos Grimm encontramos essas terríveis descrições, mas encontramo-las em várias edições utilizadas pelas escolas de educação infantil. 


 


Diante destes fatos, cabem algumas perguntas:


 


Até quando nós (pais, educadores, pedagogos, pesquisadores da área de educação) aceitaremos estas narrativas que amedrontam e apavoram as crianças, como se fossem um conteúdo útil e benéfico? 


 


Até quando nos manteremos anestesiados diante de narrativas que promovem o medo e o terror em pequeninos seres humanos que mal ainda conseguem se alimentar por si próprios? 


 


Até quando nossa incapacidade de reflexão nos manterá como perpetuadores de um discurso obsoleto, anacrônico e totalmente deslocado de nosso tempo e contexto histórico? 


 


Até quando reproduziremos nas salas de aula o ensino dos vícios e do medo, em vez de ensinarmos as virtudes? 


 


É urgente que todos os atores (pais, pedagogos, pesquisadores e educadores em geral) deste importante e nobre processo que se chama Educação Infantil sejam mais ativos e mais participativos. A passividade é a posição mais cômoda, mas ela é incapaz de melhorar o nosso mundo. É urgente que os conteúdos de literatura para crianças sejam revistos e atualizados e que se proponham soluções pedagógicas atuais. Os contos de fadas e narrativas semelhantes não representam estas soluções. O tempo da ministração da literatura é um tempo rico e valioso na Educação Infantil para ser desperdiçado com conteúdos inadequados como são os contos de fadas. Existe uma miríade de novas e boas propostas de literatura infantil. Resta aos educadores o trabalho de selecioná-las com critérios bem definidos e fundamentados, levando em conta que a criança é um ser em desenvolvimento e que necessita de orientação e informação adequadas para se tornar um adulto emocionalmente equilibrado e cognitivamente bem formado. Educar é criar as condições para que este pequeno ser em desenvolvimento se torne um adulto capaz de gerenciar a própria vida e capaz de transformar o nosso mundo em um mundo melhor. Para que logremos êxito nesta nobre missão, precisamos constantemente questionar os discursos vigentes, a fim de identificarmos suas inadequações e propormos sua superação.



* O autor é bacharel em Letras pelo Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo (USP) e mestre pelo programa de Filologia e Língua Portuguesa da USP.