domingo, 1 de março de 2015

A Pedagogia do Horror (parte II): a inadequação dos contos de fadas na Educação Infantil (por Fernando Martins)

No dia 10 de fevereiro de 2015, o Canal Brasil, de TV por assinatura, veiculou o programa “No Divã do Dr. Kurtzman”, em que foi entrevistado o cantor, músico e compositor brasileiro Zeca Baleiro. O músico contou que, quando criança, ouvia histórias do folclore regional em que os ciganos figuravam como sequestradores de crianças. Um dia, foi a uma festa com um amigo que resolveu pregar-lhe uma peça. Combinou com um cigano, que atendia em uma das barracas do evento, que ao passar próximo da barraca apontaria para o cigano e diria ao menino: “O cigano irá te pegar!”. A ignorância ou a crueldade da ação não parou por aqui. O cigano, incorporando o personagem da trama, corre atrás do menino dizendo que iria pegá-lo. Resultado: o menino Zeca Baleiro corre desesperadamente, sem parar, até a sua casa e se refugia debaixo de sua cama. O músico finaliza seu testemunho dizendo que aquele episódio ficou marcado em sua mente como uma espécie de trauma. Certamente poderíamos coletar diversos outros testemunhos semelhantes ao de Zeca Baleiro, em que crianças são vítimas destas histórias. 


 


O importante a ser observado é o fato de que histórias como estas continuam a ser transmitidas não somente na cultura popular, mas nos ambientes formais de Educação Infantil, ou seja, nas escolas públicas e privadas de nosso país. Estas histórias possuem o mesmo eixo central do enredo dos contos de fadas. 


 


Se estas histórias, como os contos de fadas, fossem contadas na Idade Média europeia, não seria muito difícil entender a razão pela qual elas eram contadas às crianças, uma vez que estas narrativas representavam exatamente o mundo tenebroso daquele espaço e tempo histórico, conforme já nos descreveu o historiador Robert Darnton.


 


O mais espantoso é saber que no Brasil do século XXI, estas histórias sejam ministradas como conteúdo de sala de aula para crianças na Educação Infantil. Parece não haver, por parte dos educadores, pesquisadores e dos responsáveis pela elaboração dos documentos regulatórios da política educacional promovida pelo Ministério da Educação, nenhuma discussão séria e aprofundada sobre a adequação ou inadequação destes conteúdos para nossas crianças. Parece que os educadores de um modo geral ficam anestesiados diante destas narrativas e não conseguem perceber o quanto de crueldade, de medo, de terror e de horror estas narrativas podem incutir nas crianças. Ou será que devemos desprezar e desconsiderar os diversos testemunhos existentes de crianças, de pais, de adultos, como o testemunho de Zeca Baleiro, que clamam em alta voz sobre os malefícios destas histórias na psique das crianças? 


 


Se analisarmos os estereótipos dos personagens que são recorrentemente encontrados nos contos de fadas, chegaremos a conclusão de que a bruxa é a personagem mais terrível e mais temível dos contos de fadas. A bruxa frequentemente exerce o papel de sequestradora e devoradora de crianças, assim como os personagens das narrativas sobre os ciganos. A pesquisadora de literatura folclórica da Universidade de Harvard, Maria Tatar, em seu livro “The Hard Facts of the Grimm’s Fairy Tales”, alerta que, para muitos adultos, ler as edições originais dos contos dos irmãos Grimm pode ser uma experiência reveladora diante das descrições de assassinatos, mutilações, canibalismo, infanticídio e incesto que preenchem as páginas destas “bed time stories”. Eu ainda acrescentaria que não somente nas edições originais dos irmãos Grimm encontramos essas terríveis descrições, mas encontramo-las em várias edições utilizadas pelas escolas de educação infantil. 


 


Diante destes fatos, cabem algumas perguntas:


 


Até quando nós (pais, educadores, pedagogos, pesquisadores da área de educação) aceitaremos estas narrativas que amedrontam e apavoram as crianças, como se fossem um conteúdo útil e benéfico? 


 


Até quando nos manteremos anestesiados diante de narrativas que promovem o medo e o terror em pequeninos seres humanos que mal ainda conseguem se alimentar por si próprios? 


 


Até quando nossa incapacidade de reflexão nos manterá como perpetuadores de um discurso obsoleto, anacrônico e totalmente deslocado de nosso tempo e contexto histórico? 


 


Até quando reproduziremos nas salas de aula o ensino dos vícios e do medo, em vez de ensinarmos as virtudes? 


 


É urgente que todos os atores (pais, pedagogos, pesquisadores e educadores em geral) deste importante e nobre processo que se chama Educação Infantil sejam mais ativos e mais participativos. A passividade é a posição mais cômoda, mas ela é incapaz de melhorar o nosso mundo. É urgente que os conteúdos de literatura para crianças sejam revistos e atualizados e que se proponham soluções pedagógicas atuais. Os contos de fadas e narrativas semelhantes não representam estas soluções. O tempo da ministração da literatura é um tempo rico e valioso na Educação Infantil para ser desperdiçado com conteúdos inadequados como são os contos de fadas. Existe uma miríade de novas e boas propostas de literatura infantil. Resta aos educadores o trabalho de selecioná-las com critérios bem definidos e fundamentados, levando em conta que a criança é um ser em desenvolvimento e que necessita de orientação e informação adequadas para se tornar um adulto emocionalmente equilibrado e cognitivamente bem formado. Educar é criar as condições para que este pequeno ser em desenvolvimento se torne um adulto capaz de gerenciar a própria vida e capaz de transformar o nosso mundo em um mundo melhor. Para que logremos êxito nesta nobre missão, precisamos constantemente questionar os discursos vigentes, a fim de identificarmos suas inadequações e propormos sua superação.



* O autor é bacharel em Letras pelo Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo (USP) e mestre pelo programa de Filologia e Língua Portuguesa da USP.