quarta-feira, 4 de abril de 2018

Gratidão

Entre normas e regras internas criadas seguimos nossos dias, agindo de forma quase automática. Sobre esmolas havia criado um roteiro que me guiava, admirando quem o fazia mas tentando ajudar de outras formas. Já havia visto adultos explorando crianças e recolhendo o dinheiro que pediam na rua.
Aquela era uma fria noite de junho e com este conceito intrínseco esperava minha vez na fila do mercado. Numa mão uma garrafa de vinho, na outra salgados e na cabeça o pensamento em ajeitar as coisas em casa para receber amigos minutos depois.
- Tio, você pode comprar este pão pra mim? - me perguntou um menino de seus 12 anos.
Seus trajes surrados indicavam que dormia na rua. Usava uma blusa fina de moletom para o frio que fazia e exibia um saco de pães na mão.
- Não tenho, meu amigo. - Respondi de forma maquinal, quase friamente.
O garoto se virou como já acostumado àquela resposta e se dirigiu a um senhor da fila ao lado, recebendo mais uma negativa.
"Espere! - pensei - Ele me pediu para comprar pão, não dinheiro".
Enquanto ele andava meio sem destino após um terceiro não o chamei. "Amigão, deixa que eu passo o pão pra você".
- Obrigado! É oito e quarenta. - disse como que preocupado se não seria muito caro.
Aliviado por ter conseguido "resgata-lo" vi na frente do caixa prateleiras repletas de doces de todas as cores. Perguntei se não queria pegar um. Ao me perguntar qual, respondi o que toda criança sonharia ouvir: "pode escolher".
Viu os valores, pensou e perguntou:
- Em vez do doce, posso pegar um refrigerante?
É claro que podia. Outra pessoa passasse aqueles pãezinhos e talvez minha consciência pesaria de não ter ajudado. Disparou para o corredor de bebidas e voltou feliz com uma coca de 2 litros.
- É seis e cinquenta, pode ser?
Ao passar no caixa retomou:
- O meu é oito e quarenta do pão e seis e cinquenta da coca. E o seu? - disse apontando para a garrafa de vinho.
Disse que não lembrava ao certo. E não lembrava mesmo, mas também estava sem jeito de dizer o valor daquela garrafa que, apesar de não ser um vinho caro, era muito mais do que o lanche que alimentaria algumas pessoas de sua família aquela noite.
- É engraçado, as vezes as pessoas nem sabe quanto custa as coisas... - disse entre divertido e pensativo.
Nos despedimos. Ele seguiu feliz para a rua com seu irmão que o esperava junto ao caixa. Entrei no carro e o conforto do interior, longe do vento frio que fazia lá fora, me envolveu. Saindo do estacionamento vi na calçada os dois irmãos, abrindo o saco de pães com o provável irmão mais velho, que estava sentado envolto em um fino cobertor cinza. A noite seria mais agradável para aqueles três. Assim como também seria a minha, envolto aos amigos.
Ao seguir em diante senti uma gratidão imensa. Não tivesse resgatado a oportunidade naquele supermercado poderia ter visto uma cena diferente naquela calçada.
E poucas vezes um vinho foi tão gostoso quanto o daquela noite.