terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Bastião

Um homem bom, daqueles que em apenas dois minutos de conversa percebemos a pureza de seu coração. Assim é Bastião. O conhecemos no ano passado, em Crateús, interior do Ceará.
Semana passada tivemos o prazer de reencontrá-lo, como sempre, com um largo sorriso estampado no rosto e seu alegre pandeiro nas mãos. Instrumento que, aliás, toca como poucos. Aprendeu praticamente tudo de ouvido e deixou nosso amigo Bruno (músico da equipe) tão impressionado que este o presenteou com nosso pandeiro: um profissional, que levamos em todas as viagens.
Numa noite, após um dia de trabalho na escola, juntamos os amigos para uma rodinha de música. Sentando-se ao meu lado puxou de uma sacola um pequeno saco jeans, que abriu com todo carinho e retirou de dentro o novo pandeiro, como quem descobre seu querido filho. Acompanhando o som da viola e do triângulo, Bastião tocava seu instrumento com empolgação, e um improvisado e alegre forró surgia ecoando por toda a escola.
Ao cair da noite, como havíamos prometido, o levamos em casa. A escola fica na zona rural de Crateús, e dali iríamos mais alguns quilômetros adentro para chegar na comunidade onde morava.
Após andar 200 metros no carro, Luis - que estava na direção - parou e disparou:
- Bastião, você sabe que nada é de graça, nao é? A gente vai te dar uma carona, mas tem um preço... E nós achamos que será muito caro.
Ele deu risada e logo entendeu que seria muito barato para ele ir tocando até o fim da viagem. Para nós seria a carona mais abastada da história!
Eu imaginava que ele iria tocando alguns ritmos solados, despretenciosamente, quando ele começou a tocar "Trem das onze". A música - praticamente um hino da música brasileira - foi recebida com entusiasmo por todos na van em que estávamos e a cada nova canção eu me impressionava mais, não só por sua habilidade no pandeiro, mas também pelo seu jeito original de cantar. Além do mais era incrível a afnação de sua voz e a noção musical que possuía.
Tudo estava tão agradável que nem a estrada de terra em péssimas condições, cheia de atoleiros - causados pelas chuvas constantes daquela época do ano - atrapalhava.
Chegamos em sua comunidade. Era uma região pitoresca. Várias casas parecidas, com a fachada grande, assim como muitas casas do interior do Brasil, porém o que as diferenciava era o grande número de bois e vacas em sua frente. Talvez por falta de espaço para criá-los num curral cada casa possuía em frente sua porta 4, 5 ou até 10 gados, todos já descansando, bem quietos, naquela hora da noite.
Ao chegarmos na frente da casa de nosso amigo, pedimos, com toda sinceridade, uma última música, sutilmente negada por ele por estar tarde e a mulher poder brigar. Insistimos, dizendo que não teria problema (como se soubéssemos...), ela não ligaria.
- Rapaz, a mulher é brava! - disse rindo.
E tocou uma última música, a que mais havíamos gostado: "O xote da morena".
Estávamos muito feizes, tudo tinha sido realmente muito especial, dormiríamos muito bem, até que...
"Toc, toc, toc!!" - Alguém batia no vidro da van.
abrimos a porta e antes que qualquer pessoa pudesse dizer algo a mulher em pé foi disparando na direção de Bastião:
- Mas que pouca vergonha! É um vagabundo mesmo! Você nao tem vergonha nessa cara não, Bastião?! A essa hora da noite vadiando pela rua? É um irresponsável mesmo!!
A mulher disse exatamente essas palavras, na frente de todos e para um acanhado Bastião que descia do carro meio constrangido e se despedindo rapidamente de todos nós, que completamente atônitos e tristes víamos aquela cena.
Um talento. Um homem bom, daqueles que em apenas dois minutos de conversa percebemos a pureza de seu coração. Pena que sua mulher pode passar a vida inteira ao seu lado e nunca perceber isso.