domingo, 8 de março de 2015

Mundo ideal

Fila de supermercado tem suas peculiaridades. Uma delas é a capacidade de se fazer amizades. Poucos minutos são suficientes para assuntos diversos, dos mais frívolos aos mais transcendentais.
João havia adentrado uma conversa daquelas despretensiosas em que se discorre sobre o clima ou como estão caros os produtos. O senhor com quem trocava impressões tinha um papo fácil e interessante. Brincou com sua filha, deram risada juntos, e firmaram a amizade que sabiam ter fim em alguns minutos, numa translúcida honestidade onde ao sair do estabelecimento não trocariam contatos, talvez nunca mais se encontrariam, mas eram gratos um ao outro por simplesmente terem compartilhado aquele instante.
"Um abraço" dito e João seguiu com as compras e sua alegre filha, saltitante da altura de seus quatro anos de idade, em meio às filas de carros que se espremiam pelo estacionamento naquele agitado fim de semana em sua cidade.
Atravessando a última rua do local, um carro virou com certa velocidade, todavia em hábil tempo para que pedestre e motorista se olhassem e se reconhecessem. Poucos minutos atrás, haviam sido amigos. Tempo também para que ambos pudesses escolher, o primeiro recuar um passo, o segundo parar e dar passagem à pequena família.
Neste instante, que pareceu durar o eterno tempo de todas as conjecturas possíveis João refletiu. Fosse um mundo ideal, sua preferência seria incontestável. Porém, sabia há tempos que vivia em um lugar dramaticamente distante deste mundo e jamais arriscaria sua vida - muito menos a de seu maior tesouro! - esperando o bom senso no semelhante, tão escasso pelas ruas como a água nos reservatórios de sua cidade.
Recuou, no mesmo instante em que o adversário acelerou. Se espantou de ser "no mesmo instante", pois o motorista contou que ele não confiaria na bondade alheia e retrocederia. Do contrário...
Do caso contrário João não queria pensar. Apertou a mão de sua pequenina com o mesmo aperto que sentia em seu coração; pelo risco que ela sofreu. Pela tristeza em saber que sua amada filha não vivia em um mundo ideal.