domingo, 28 de setembro de 2008

"Diário de Bordo": Canudos - Final de ouro

Há aquelas situações em que passamos por momentos fantásticos e lamentamos a falta de uma máquina fotográfica ou filmadora para registrá-los. Ficamos com imagens e histórias gravadas em nossas lembranças mas com uma sensação de frustração ao contar para os amigos e não conseguir passar nem 10 por cento de toda a emoção que presenciamos. Aquela velha máxima: uma imagem vale mais que mil palavras.
Ou então estamos submetidos à maldade engraçada de nossos amigos: “Ah... Tá bom, acredito...” e àquelas risadinhas que normalmente seguem o comentário.
Ainda bem que em Canudos estamos com nossas máquinas conosco o tempo todo. O que presenciaríamos na tarde de nosso último dia seria algo realmente impressionante!
Em nossa última noite tivemos uma reunião com alguns moradores da comunidade. Ali conversamos sobre o plano de saúde bucal, a biblioteca e os dois novos projetos para o fim de ano: o Papai Noel jagunço (claro que não tem esse nome, mas achei que somente “Natal” não exprimiria o sentido) e o Posto de Saúde do IBS.
Foram cadastradas todas as famílias da região – em torno de 140 – e todas receberão presentes doados aqui de São Paulo, uma semana antes do natal. Com direito a Papai Noel e tudo. As crianças que moram ali o conhecem, mas nunca viram um “ao vivo”.
Quem tiver interesse em presentear uma família pode ligar para o IBS (Tel: (11) 3791-0015) e pegar a lista de uma família – há diferentes números de familiares e de crianças – e mudar o natal de pessoas maravilhosas que nunca tiveram a oportunidade de viver um natal como nos filmes que povoam sua tv no fim de ano.
Já o Posto de Saúde é um sonho antigo do Instituto. Do mesmo modo como foi feita a biblioteca o Luis propôs aos moradores nova parceria: nós daríamos o material e eles subiriam a construção. Será uma grande casa geminada, onde de um lado funcionarão salas médicas e odontológica e do outro uma casa para os voluntários. Em dezembro, junto com o natal da comunidade, será inaugurado o Posto.
Refaço aqui meu convite aos amigos dentistas e médicos. Será uma semana de trabalho/férias, o tipo de trabalho que não cansa, faz um bem enorme a todos e recebemos muito, mas muito mais do que poderíamos se ganhássemos em dinheiro. Além disso conhecerá um lugar mágico (coloquei essa palavra assim mesmo, sem aspas) onde o tempo parece correr de forma completamente diferente ao que estamos acostumados. Acordar, tomar um banho na represa, atender, conhecer pessoas de bem, noites muito agradáveis... Recomendo muito!
No dia seguinte à reunião acordamos já com aquela conhecida sensação de tristeza. Seria o dia da despedida. Daríamos “até logo” a pessoas que não só nos recebem, mas também nos consideram, como se fôssemos da sua família.
O Luis costuma chamar a Madalena de mainha. Naquele pouco tempo em que convivi com ela – nas outras vezes que havia ido à comunidade não fiquei hospedado em sua casa – me senti realmente como se fosse da família. No café da manhã, meio sem jeito, perguntei à Madalena se podia chamá-la de mainha também, ao que ela respondeu:
- Ô meu filho, mas eu ia ficar feliz é demais!
Partiríamos logo depois do almoço rumo à Salvador, por isso resolvemos aproveitar a última manhã e nos despedir também da bela represa sobre a antiga cidade de Bello Monte. O sol estava quente e no horizonte, em alguns pontos espalhados, víamos aquela pequena cortina de chuva.
Enchemos o carro com nossos amigos e com todas as crianças e descemos para a água, que estava naquela temperatura perfeita.
Ali o Luis inventou um novo esporte: o arremesso de crianças à distância. O Gabrielzinho e a Gabriela, dois irmãos de 4 e 6 anos, bem levezinhos voavam alto para cair na água alguns metros à frente.
Quando íamos ao simpático e rústico barzinho que descansava ali na beira da represa, as crianças nos acompanhavam e faziam a festa nos salgadinhos e refrigerantes. Eu e o Luis deixávamos que os pequenos se lambuzassem e se divertissem, comendo tudo o que seus pais não deixariam antes do almoço. Como é bom ser criança!
O preferido de todos era um saquinho de uns 15 centímetros – como aqueles de chup chup, ou geladinho, só que mais grossos – cheio daqueles salgadinhos amarelos e fininhos, gostosos mas que paradoxalmente tem gosto de nada com sal. Comiam tudo e logo vinham pedir para que pegássemos mais. Depois de me pedirem uns trocentos, comentei com o Luis: “caramba, como as crianças estão se empanturrando com esses salgadinhos”, dava até medo de passarem mal. Então descobrimos o motivo da fome incessante: cada saquinho tinha bem lá no fundo uma bexiguinha colorida, dessas de aniversário. Eles comiam tudo e depois ficavam enchendo e brincando com as bexigas.
A hora de subir estava se aproximando, logo teríamos que almoçar e arrumar as malas. Nesse momentos estávamos todos na água. O Luis então juntou toda a turminha para um agradecimento. Nos demos as mãos e ele começou um pequeno discurso, de tudo o que sentíamos mesmo, dizendo que nós agradecíamos muito por todos nos receberem tão bem, que somos todos uma família mesmo, num tom bem emocionante. De repente olhei para o horizonte e não pude acreditar: havia um halo esverdeado/ avermelhado, uma luz colorida sobre a região do parque estadual, onde houve a guerra. Nunca havia visto algo parecido, imaginei ser um arco-íris mas não sabia que ele poderia se deitar, tão caprichoso numa só região, fugindo àquela conhecida forma de arco que lhe dá o nome.
- Luis, dá uma olhada ali - o interrompi, ainda boquiaberto com a visão.
Ele parou, olhou pra mim com os olhos arregalados e começamos a dar risada. Depois conversaríamos sobre esse momento e vimos que pensamos a mesma coisa: não podíamos cortar aquele clima de agradecimento sincero com os amigos de uma vez, mas ao mesmo tempo nossas máquinas "gritavam" de dentro das mochilas: "O que vocês tão fazendo parados aí!! Acha que todo dia tem um fenômeno desses??!!"
Ainda estávamos todos de mãos dadas, Luis rapidamente agradeceu, demos aquele abraço geral em todos, como num time de futebol americano e saímos correndo, em disparada, para nossas desesperadas máquinas fotográficas.
Graças a Deus (e só ele podia nos presentear com uma visão daquela...) conseguimos chegar a tempo de fotografar aquela cena magnífica.
Assim, pouco a pouco, o árco-íris foi nascendo, subindo no horizonte, retomando sua forma habitual.
- Meninos, vocês viram que coisa mais linda que foi aquele arco-íris que apareceu?? - nos perguntou a Madalena quando subimos, pouco mais tarde. Disse que estava preocupada que nós não estávamos ali e se estávamos vendo aquilo. Assim percebemos o quanto o fato foi único: ninguém ali também tinha visto algo igual. Mesmo no lugar mais mágico que eu conheço...
Ficamos ali, na frente da represa, assistindo ao espetáculo da natureza, ao vivo, para todos nós. A tristeza de ir embora sumiu, esmagada pela euforia de ver algo tão bonito.
Com este fechamento perfeito sabíamos que havia chegado a hora de voltar. Agradecidos por tudo o que passamos naqueles poucos dias em Canudos.





Um comentário:

  1. 1 arrepio, 2, 3, enfim, perdi as contas de tantos q senti ao ler...parabéns por tecer c/ palavras um texto tão bonito ;o)

    Evy

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