domingo, 29 de agosto de 2010

À noite

Ele acorda cedo, em torno das 5 da manhã. Desce as ruas da favela em busca do ponto de ônibus que fica lá no asfalto. Sempre apreensivo, cumprimentando com a cabeça aqueles que já foram grandes amigos das "peladas" de infância, quando corriam atrás de uma bola de meia e a vida parecia não ter tantas preocupações. Hoje sim, tem consciência das privações que sua família passa e da violência que o cerca.

"À noite, quando o calor se mistura com a luz da tv preto e branco
À noite, eu quieto dentro de casa ouvindo rajadas de bala"


Entra no ônibus e viaja, no tempo e em pensamentos. Sonha acordado com dia que sua vida vai mudar. E vai mudar, sabe disso. Só não sabe quando. Enquanto isso trabalha muito e, cansado, viaja de volta para seu barraco. Saiu no escuro, volta no escuro.

"À noite, fatos ruins do jornal se unem ao meu cansaço
À noite, o mesmo corpo cansado as vezes se perde em frente à saída"


É duro, sabe, mas entende também que a vitória tem mais gosto com o tempero do suor. Imagina os playboyzinhos que ganham tudo de mão beijada dos pais e não dão valor a isso. Já viu vários se acabando no mundo das drogas, que se esparrama pelas ruas de sua favela. O dinheiro compra a droga, mas não a paz. E isso ele tem. Graças a Deus! Pensa nos antigos amigos, que se enveredaram pelo caminho mais fácil e muito mais perigoso: o do crime.

- Mano, a sociedade é injusta! O nego rala que nem um condenado pra tirar uma merreca por mês. No tráfico eu ganho 3 vezes mais! - cansou de ouvir.

Já pensou muito no assunto, e chegou à conclusão que índole, nasce com a pessoa. Não existe essa história de "a miséria empurra para o crime". Tem muitos amigos do bem, que são tão pobres como ele e decidiram escolher o caminho correto. Isso é desculpa de quem já era "torto". A favela tá abarrotada de gente honesta.

"Mesmo assim eu paro e agradeço
Por eu não fazer do rancor minha vida
Por ainda acreditar no poder do amor
Revolucionário e salvador
Amor que me tirou a arma da mão
E me deu mais essa canção"


E assoviando uma melodia, deita a cabeça, leve, no travesseiro duro e amarrotado. E dorme em paz.



Texto e estilo inspirado no blog Mulher na Polícia
Música: À noite - O Rappa, de 1994

8 comentários:

  1. Que lindooooo isso, Wolber.

    Realmente, meu amigo, nada empurra ninguém ao crime, nem para uma vida torta.
    Acho eu que a indole já nasce com a pessoa.
    E sabe? Lendo esse texto, me deu uma vontade de cantar a música do Chico Buarque aqui (Ainda irei postar ela lá).



    Tem certos dias
    Em que eu penso em minha gente
    E sinto assim
    Todo o meu peito se apertar
    Porque parece
    Que acontece de repente
    Como um desejo de eu viver
    Sem me notar
    Igual a tudo
    Quando eu passo no subúrbio
    Eu muito bem
    Vindo de trem de algum lugar
    E aí me dá
    Como uma inveja dessa gente
    Que vai em frente
    Sem nem ter com quem contar

    São casas simples
    Com cadeiras na calçada
    E na fachada
    Escrito em cima que é um lar
    Pela varanda
    Flores tristes e baldias
    Como a alegria
    Que não tem onde encostar
    E aí me dá uma tristeza
    No meu peito
    Feito um despeito
    De eu não ter como lutar
    E eu que não creio
    Peço a Deus por minha gente
    É gente humilde
    Que vontade de chorar


    Tão bom passar aqui meu amigo, tão bom!!!

    Wolber, bjão pra ti!!!

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  2. Boa noite Dr. Wolber...

    Tem certeza que essa inspiração toda foi lá naquele bloguinho mesmo? Então acho que eu preciso reler as coisas que escrevo lá. rs rs rs

    Parece que a música empresta uma intensidade extra ao contexto, não é? O texto acaba virando um clip!
    E o resultado dessa combinação, dessa parceria sempre me agrada muito.

    Tenho certeza de que quem ouvir essa música irá sempre se lembrar do seu texto e principalmente da mensagem de uma belíssima e inspiradora resistência do brasileiro que sabe valer a pena ser honesto.

    ; )

    Um beijo!

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  3. Suas crônicas tem muita humanidade... Gostei daqui e voltarei certamente...

    Beijos e boa semana.

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  4. Oláa Sil!! Tudo bem?

    Bom mesmo é receber um comentário seu! Fico sempre muito feliz, muito obrigado!

    É isso, acho que as dificuldades podem até facilitar as coisas, deixar o caminho do crime mais próximo, e tal, mas não é desculpa. Entra quem quer e tem vocação.

    Pegue uma pessoa que tem pavor de ver sangue e force-a a fazer medicina. Não vai rolar. Com o crime é a mesma coisa (inclusive o exemplo do sangue...).

    Essa música do Chico é incrível. Imagine, nesses trabalhos do sertão, vemos tantas casas desse jeitinho que fala. É um hino que sempre me lembro. Legal você lembrá-la também.

    É sempre um prazer te receber aqui, minha amiga!

    Grande abraço!

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  5. Pois é, minha amiga. Seu blog é um dos mais bem escritos e criativos que eu sigo. Está de parabéns!

    Muito legal o que disse sobre música e texto. É isso mesmo.

    Obrigado pela visita e pelos seus texto também!

    Grande abraço!

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  6. Oi Pétala! Tudo bem com você?

    Muito obrigado, de coração! Tanto pelas palavras, quanto pela visita.

    Um abração!

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  7. Wolber!
    É uma vida a preto e branco, eu diria
    mesmo negra, de onde é muito difícil sair, ou nunca se consegue sair.
    Parabéns pelo excelente texto.

    Um abraço,
    José.

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  8. Grande José!! Tudo bem?

    É assim mesmo. Mas eu, sinceramente, acredito que todos podem sair. Conheço muitas histórias de pais que se desdobram para dar educação aos filhos (nos dois sentidos) e mesmo com toda as dificuldades, os formam na faculdade.

    É a perseverança!

    Grande abraço, meu amigo!

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