quarta-feira, 10 de junho de 2020

Máscaras e sobrevivência

De repente ele passou a ver as pessoas de máscara. A primeira pensou se tratar de alguém doente. Mas aí veio outra e outra...
"Que diacho tá acontecendo?".
No princípio até se questionou se o estavam sacaneando, uma forma de reclamar de seu cheiro sem terem que olhar em seus olhos. Afinal, olhar nos olhos é uma coisa que um morador de rua se desabitua. Mas as viu aparecendo também dentro de ônibus que passavam apressados pela rua movimentava onde vivia.
"Pois é, estamos passando uma pandemia. Um vírus que está se espalhando pelo mundo todo!", lhe disse uma senhora simpática que vez ou outra lhe deixava algum petisco. Dormir na frente de um supermercado é estratégico.
Se você passa a morar na rua tem que desenvolver algumas estratégias de sobrevivência. Alimentação é uma delas. Banheiro outra. Ali naquela região deu sorte, fez amizade com trabalhadores, alguns taxistas no ponto da frente e o dono do bar da esquina onde teve a bênção de usar o banheiro. Dá para imaginar o valor de se usar uma privada quando já sofreu para encontrar um lugar o mínimo escondido para aliviar suas necessidades, agachado em um lugar público e sem ter com o que se limpar?
Alguns como ele - não costumava usar a palavra "amigos" - não tinham a mesma sorte.
"Na rua você não tem amigo", dizia. "Cada um tenta sobreviver como pode e se você tá no caminho da sobrevivência do outro é melhor correr...".
Tentou durante um tempo dormir em albergues. Desistiu. O clima que encontrava por lá era horrível! Primeira noite, roubaram seu cobertor; depois, dividir espaço com outros que vivem suas dores e loucuras não lhe pareceu uma boa idéia. Preferiu a rua, mesmo no frio. Pelo menos fazia o que queria e não dava satisfação a ninguém.
Essa era sua vida, seu cotidiano, que se alterava naquele momento com o desfile de máscaras ao seu redor.
"Você tem que tomar cuidado! Esse vírus é muito perigoso!" - disse outra senhora, olhos bondosos, mas que tinha aquele traço de dó que ele tanto detestava. Porém aprendeu a separar isso. Tudo ficava mais leve se focasse no aspecto bondoso da pessoa e não na dó vergonhosa que recebia.
Olhou para a máscara depois que ela foi embora. Colocou no rosto, mais para sentir como era usar uma. Mais para, pelo menos num instante, se sentir parte da sociedade. Por um instante se sentiu um cidadão, junto aos demais. Enfim compartilhava algo com os outros à sua volta, mesmo que fosse o medo de uma doença.
O medo. Tirou depressa a máscara, como acordando de um sonho que parecia bom mas o poderia levar ao precipício. Havia levado um bom tempo para criar a casca em sua alma que o protegia naquele duro cotidiano, não podia correr o risco de quebrá-la.
Já tinha comido coisas do lixo não seria qualquer vírus que iria baqueá-lo.
Morrer? Tinha coisas mais importantes para pensar naquele momento, como onde conseguiria comer naquele dia.

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