terça-feira, 26 de agosto de 2008

"Diário de Bordo": Canudos - O dia seguinte

Acordamos cedo na primeira manhã; eram 7 horas. O sol começava a despontar brilhante no céu, porém o tempo ainda estava um pouco frio, bem característico daquela região próxima à represa: frio de noite e de manhã e muito calor durante o dia.
Como tínhamos acabado de chegar de São Paulo – onde o tempo também não estava quente – a manhã estava muito agradável. Para tomar um bom banho descemos os cerca de 50 metros que separam o quintal da Madalena até o limpo e bonito açude de Cocorobó.
Um senhor estava de pé e de braços cruzados em frente as calmas águas, ao lado de 5 canoas que balançavam pacientemente amarradas a um toco encravado na terra. O cumprimentei e ele respondeu com um amável sorriso. Seu nome era Vicente, tinha uma casinha simples, bem próxima à represa e era pescador.
Àquela hora da manhã já havia pescado e voltado. Disse que algumas vezes sai com sua canoa antes das 5 da manhã.
- Mas esses dias não estão bons pra pescar, não. Além de estar frio o vento tá batendo muito as águas, os peixes somem. – me contou.
Naquelas águas existem vários tipos de peixes. Além deles, o camarão de água doce, em abundância por ali, também enche as redes dos pescadores. Eu o experimentaria mais tarde numa deliciosa farofa que a Madalena faria especialmente por eu nunca ter comido os bichinhos.
Banho tomado, subimos de volta para o café da manhã. “Meu Deus, desse jeito vou me acabar aqui!”, pensei no momento em que vi a farta mesa que nossa amiga preparou à nossa frente, com pão francês, sovado, queijo, manteiga de garrafa, cuz cuz, ovo frito, café, leite em pó... Tudo o que adoramos. Comemos como se fosse a última vez.
Quase “rolando” seguimos para a pequena escola, onde as crianças nos esperavam para um exame clínico onde verificaríamos a quantidade de cáries e qualidade da escovação. Eu estava muito empolgado com a implantação deste trabalho, o mais importante planejado nestes anos de IBS.
O intuito é capacitar alguns voluntários locais com todas as informações necessárias para que os pais possam criar seus filhos longe das cáries. Esses voluntários visitarão primeiro as casas das mulheres grávidas, depois das mães com filhos pequenos e assim por diante, com uma apostila de prevenção e kits com escova e creme dental.
A idéia será retornar a cada ano para verificar uma melhora no índice de cáries das crianças menores de 5 anos, algo plausível numa comunidade pequena como aquela, onde há crianças com dentes completamente destruídos pela falta de escovação.
Após o almoço fizemos essa capacitação, onde cinco pessoas se interessaram em contribuir com o projeto. No meio da tarde conseguimos um tempo para descer até o açude. Devia estar mais de 30 graus e o calor (aliado à beleza das águas azuis de várias tonalidades da enorme represa) convidava a um mergulho.
Como não levamos o odontoportátil (cadeira de dentista que levamos na van e que funciona em qualquer tomada como se fosse um consultório completo, com motores, sugador e podemos fazer restaurações; quase tudo o que fazemos num consultório) pude conhecer bem a região desta vez. Quando temos a possibilidade de restaurar dentes, tirar a dor, enfim, atender as pessoas da região, é muito difícil ter tempo para visitar alguns locais. Desta vez juntamos nossos amigos Cristiano, Jackson e Quinha e preparamos um roteiro para conhecer Canudos – bem, pelo menos eu conheceria, todos ali já eram veteranos – nas horas vagas.
Descemos até a represa. A água estava muito boa, na temperatura ideal para umas braçadas. Me lembrei da história do Luis, que na primeira vez que mergulhou naquelas águas teve alguma reação alérgica, daquelas de se ficar todo inchado. Por alguns anos ficou com receio de entrar de novo. “deve ser algo do povo do Conselheiro”, brincavam. Porém no ano passado entramos com ele no começo da noite, no fim de um dia de trabalho. Mas foi nesse ano ele fez as pazes com o local numa “conversa” franca com o açude e hoje entra sem medo.
De noite jantaríamos uma deliciosa galinha caipira, a mesma que Madalena estava depenando na panela quando acordei de manhã. Fiquei com pena – sem trocadilhos – da galinha na hora, mas tenho que admitir que de noite nem me lembrei com a fome e com o tempero gostoso da pobrezinha...
No dia seguinte iríamos para Bendengó – cidade a alguns quilômetros da comunidade – comprar telhas para a biblioteca e fazer um orçamento para uma futura construção, plano que discutiríamos no sábado com os moradores.
Deitei na cama carinhosamente arrumada pela Madalena e, com cuidado, fechei o mosquiteiro sob o colchão; haviam muitos pernilongos, muitos mesmo. Podíamos até ouvi-los cantar sua assustadora sinfonia. Mas para minha alegria podia rir da cara deles por ver que paravam a poucos centímetros de seu alvo. Não seria comigo que matariam sua fome; e, pronto para dormir, imaginei uma risada maligna.